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Igiaba Scego e as histórias ocultas da Somália italiana

Por: Raul Silva para o Radar Literário do Teoria Literária.

A escritora Igiaba Scego ilumina as complexas relações entre Itália e Somália em sua obra

Igiaba Scego, renomada escritora italiana de origem somali, tem se destacado no cenário literário por sua habilidade em tecer narrativas que exploram as intrincadas e muitas vezes dolorosas relações entre Itália e Somália. Em suas obras, Scego investiga as memórias silenciadas do colonialismo italiano na Somália, revelando as histórias ocultas e as feridas não cicatrizadas que persistem até os dias atuais.

Igiaba Scego é uma das vozes mais significativas da literatura contemporânea
Igiaba Scego é uma das vozes mais significativas da literatura contemporânea

Nascida em Roma em 1974, filha de pais somalis que buscaram refúgio na Itália após um golpe de Estado em seu país natal, Scego cresceu imersa em duas culturas distintas. Essa experiência bilíngue e bicultural moldou sua identidade e sua escrita, conferindo-lhe uma perspectiva única sobre as questões de identidade, migração e pertencimento. A infância de Scego em Roma foi marcada pela ausência física da Somália, um lugar que existia principalmente em memórias familiares e relatos orais. Essas narrativas construíram um imaginário rico e complexo sobre a Somália, que contrastava fortemente com a realidade da vida na Itália e com as representações estereotipadas que circulavam na sociedade italiana. A jovem Igiaba cresceu nutrindo uma profunda curiosidade sobre suas raízes e sobre a história de seu povo, uma busca que se tornaria um dos motores de sua produção intelectual e artística.

Em seus romances, ensaios e artigos, Scego aborda temas como o racismo, a discriminação e a violência que marcaram a história da presença italiana na Somália. Ela resgata vozes esquecidas e dá visibilidade às experiências de somalis que foram marginalizados e oprimidos durante o período colonial e além. Scego utiliza a literatura como um espaço de resistência e de denúncia, no qual ela pode dar voz aos que foram silenciados pela história oficial. Suas obras nos confrontam com as atrocidades do colonialismo italiano, com a violência do regime fascista e com as injustiças que continuam a ser cometidas contra os imigrantes e refugiados somalis na Itália. A escrita de Scego é um ato de memória e de justiça, uma tentativa de reparar as feridas do passado e de construir um futuro mais humano e igualitário.

Uma das obras mais aclamadas de Scego, o romance "Oltre Babilonia" (Além de Babel), publicado em 2008, narra a história de três gerações de mulheres somalis que vivem na Itália. O livro explora as complexidades da identidade diaspórica, as dificuldades de integração e os desafios de conciliar diferentes heranças culturais. A narrativa de Scego mergulha nas profundezas da experiência feminina, revelando a força, a resiliência e a capacidade de superação dessas mulheres diante de adversidades como o exílio, a perda e o preconceito. Ao traçar um paralelo entre o passado colonial e o presente da diáspora somali na Itália, a autora nos convida a refletir sobre as continuidades e rupturas na história das relações entre os dois países. Além disso, a obra destaca a importância da memória e da transmissão oral na preservação da identidade cultural e na luta contra o apagamento histórico.

Em "La mia casa è dove sono" (Minha casa é onde estou), uma coletânea de ensaios publicada em 2010, Scego investiga as memórias de sua infância em Roma e suas viagens à Somália. Ela reflete sobre a história do colonialismo italiano, a violência do regime fascista e o impacto duradouro desses eventos nas relações entre os dois países. A autora nos leva a uma viagem pessoal e histórica, na qual memórias familiares se entrelaçam com relatos de figuras importantes da resistência somali ao colonialismo italiano. Scego examina criticamente o papel da Itália na Somália, desde a imposição do domínio colonial até a exploração dos recursos naturais e a repressão cultural. Ela também aborda as contradições e ambiguidades da identidade italiana, questionando a narrativa oficial que busca minimizar ou apagar os crimes do passado. Ao fazê-lo, a autora nos desafia a confrontar as feridas não cicatrizadas do colonialismo e a reconhecer as responsabilidades do presente.

A escrita de Scego é caracterizada por sua honestidade brutal, sua prosa poética e sua capacidade de combinar história pessoal e coletiva. Ela não hesita em confrontar os aspectos mais sombrios do passado colonial italiano, lançando luz sobre as atrocidades cometidas e as injustiças sofridas pelo povo somali. A autora utiliza uma linguagem evocativa e sensorial para descrever as paisagens da Somália, os sons e os cheiros dos mercados, as cores e os sabores da culinária local. Ao mesmo tempo, ela não se furta em denunciar a violência do regime fascista, os massacres de civis, a pilhagem do patrimônio cultural e a imposição de uma ideologia racista e discriminatória. Scego nos mostra como o passado colonial continua a assombrar o presente, manifestando-se nas desigualdades sociais, na marginalização dos imigrantes e na persistência do racismo na sociedade italiana.

Além de seu trabalho literário, Scego também é uma ativa defensora dos direitos dos imigrantes e refugiados na Itália. Ela participa de debates públicos, escreve artigos e concede entrevistas para aumentar a conscientização sobre as questões da migração e do racismo. A autora utiliza sua visibilidade como intelectual e escritora para dar voz aos que não têm vez, para denunciar as injustiças e para propor soluções para os problemas que afligem a sociedade italiana contemporânea. Scego critica as políticas migratórias restritivas e xenófobas da Itália, que transformam o país em um lugar hostil e perigoso para os imigrantes e refugiados. Ela defende a necessidade de uma abordagem mais humana e solidária, baseada no respeito aos direitos humanos e na promoção da integração intercultural. Além disso, a autora questiona o racismo estrutural que permeia a sociedade italiana, manifestando-se em diversas formas de discriminação e violência contra os negros e outras minorias étnicas.

A obra de Igiaba Scego é de fundamental importância para a compreensão das complexas relações entre Itália e Somália. Ao revelar as histórias ocultas da presença italiana na Somália, ela contribui para a construção de uma memória mais completa e honesta do passado colonial, além de promover o diálogo intercultural e a reflexão sobre as questões do presente. Scego nos convida a revisitar a história da colonização italiana na Somália, a reconhecer as responsabilidades da Itália e a reparar as injustiças do passado. Ela nos mostra como o passado colonial continua a moldar o presente, influenciando as relações entre os dois países e as experiências dos somalis na diáspora. Ao fazê-lo, a autora nos desafia a construir um futuro mais justo e igualitário, baseado no respeito à diversidade cultural e na promoção do diálogo intercultural. A obra de Scego é, portanto, um instrumento poderoso de transformação social e um testemunho da capacidade da literatura de iluminar as sombras do passado e de inspirar a construção de um futuro melhor.

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